domingo, 23 de novembro de 2014

Insegurança do Direito no Estado Democrático


A sociedade, convictamente, democrática, livre e civilizada de hoje está, todavia, conturbada, é muito complexa, difícil e vive desnorteada em relação a certas situações, insensível, materialista e obcecada pelo “Salve-se, quem puder”, não se olhando, por vezes, a meios, eventualmente, os mais cruéis, para se atingirem fins, nem sempre os melhores.
Vive-se, pelo menos a maioria das pessoas: num mundo instável; adotam-se valores que favorecem situações contrárias aos legítimos interesses de uma maioria que, de boa-fé, confiou e teve esperanças num futuro promissor que uma minoria lhes prometeu. Atualmente, segunda década do século XXI, o que ontem era verdade, seguro, adquirido; hoje é falso, inseguro e perdido.
Grandes princípios, valores, normas jurídicas e sociais, consagradas, eventualmente, em documentos religiosos, políticos e cívicos, são “letra-morta”, ou ignorada, ou ainda, substituídos, unilateral e traiçoeiramente, por outros que satisfazem interesses alheios ao bem-estar das populações, de quem realmente trabalha (para quem, ainda, tem o privilégio de um emprego) de quem produz riqueza, de quem tem experiência de vida vivida e sentida, com poupança, sacrifícios, humildade e honestidade.
A estas pessoas, cuja esmagadora maioria, não nasceu em “berço de ouro”, nem teve a ajuda de ninguém, e que, pelo contrário, necessitou de começar a trabalhar aos seis ou sete anos de idade, em vez de brincar, de estudar, a estas pessoas, tudo, mas tudo, lhes vai sendo retirado, possivelmente, sem retorno.
O princípio, segundo o qual: «Direitos adquiridos, não podem ser perdidos», era uma segurança do Direito Consuetudinário, além de que, certos direitos, estabelecidos no designado direito positivo, escrito, concebido pelas pessoas, dotadas de razão, conhecimentos, experiência, sabedoria e prudência, tais direitos, pura e deslealmente, foram subtraídos, inclusivamente àquelas pessoas que para eles contribuíram, financeiramente, pelos impostos pagos, ao longo de uma vida de trabalho, aliás, ao que parece, até se prolongam pela reforma, através de taxas, sobretaxas e sabe-se lá o que virá mais.
A título meramente ilustrativo das injustiças e, possivelmente, das irregularidades, seria certo que: «Toda a pessoa tem direito ao repouso e aos lazeres e, especialmente, a uma limitação razoável da duração do trabalho e a férias periódicas pagas” (DUDH, 1948: Artº 24, in BÁRTOLO, 2012:45). Este preceito universal foi, integralmente, vertido para a Constituição da República Portuguesa, conforme plasmado na alínea d) do Artº 59º (CRP, 2004:35).
A suspensão, em 2012, e os cortes então previstos e concretizados a partir de 2013, inclusive, por exemplo nos subsídios de férias e de Natal, contrariam o espírito de documentos universais, que Portugal subscreveu há 66 anos, bem com a Lei Fundamental Portuguesa, porque se pode admitir que haveria, como acabou por se concretizar, uma evolução positiva, no sentido de, para além das férias pagas, se lhe acrescentar um subsídio, para que os cidadãos gozassem, merecidamente, tal período, assim como no Natal, o mesmo subsídio para que se possa viver este dia da família com um pouco mais de fartura e dignidade. Nunca ninguém prometeu cortar tais benefícios, bem pelo contrário, foi prometido que eles se manteriam.
Estudava-se na disciplina de “Direito Romano”, do curso superior de Direito, que um dos pilares fundamentais do Direito era, justamente, a sua segurança e objetividade, interpretação da letra, mas também do espírito da lei e sua aplicação justa. Por muito complexa que a sociedade de hoje se apresente, as leis não podem ser alteradas, arbitrariamente, de um dia para o outro.
Infelizmente, o que cada vez mais se teme, até por decisões de Órgãos Constitucionais, insuspeitos e competentes é que, sempre que seja necessário para determinadas políticas, o Direito não se cumpre, ou alteram-se, radical e rapidamente, as normas jurídicas que “estorvam” a determinados objetivos e, ainda mais, se tanto for oportuno, até se suspende a Constituição por alguns meses. Seria caso para se pensar que se vive uma “Democracia muito singular”.
É suposto que numa democracia indireta, a maioria da população é representada por uma minoria que, mediante a conceção de um determinado projeto governativo, apresentado aos cidadãos, em campanha eleitoral, depois o execute, conforme prometeu, caso vença as eleições, precisamente por aqueles, cujos nomes constavam das respetivas listas, levadas ao conhecimento do eleitorado. Estes concidadãos, e não outros, em quem a maioria confiou o voto, têm a obrigação de cumprir, clara e lealmente, com o programa sufragado pela maioria, porque é assim que a política se deve realizar.
A política e os políticos são tanto mais nobres, quanto melhor resolvem os problemas das pessoas, e tanto mais credíveis quanto mais solidários e leais se revelam, aliás, é um imperativo ético-moral para com todos os cidadãos. A política e os políticos, num regime democrático, têm de estar ao serviço da população em geral e, em certas circunstâncias, até podem desenvolver a discriminação positiva, relativamente às classes sócio-profissionais e etárias mais desprotegidas, carenciadas e fragilizadas, mas nunca, em circunstância alguma, um ataque sistemático, precisamente aos mais fracos.
A instabilidade jurídica que, modernamente, percorre a vida em sociedade, podendo, em parte, ser provocada pela complexidade de situações sociológicas, económicas, financeiras e axiológicas, não deve, contudo, afetar projetos pessoais, empresariais e institucionais, elaborados na base da confiança entre as partes e nos fundamentos da Lei. Se assim não acontecer, corre-se o risco de ninguém querer investir, trabalhar, economizar para obter bens essenciais à própria dignidade humana., por exemplo, obter habitação própria (preceito constitucional) para depois lhe ser cobrado um imposto que, em muitos casos, até é superior a uma renda de uma casa alugada.
A segurança do Direito deve, sempre, garantir a aplicação da norma, tal como ela foi apresentada e aceite pelas partes, quando se inicia um projeto, uma atividade, o início de uma carreira profissional, um período de aposentação, seja uma reforma, seja uma pensão, não pode ser alterada negativamente, por conveniência de outros interesses, de resto, toda a norma jurídica vale para o futuro e só quando é favorável ao cidadão é que terá efeitos retroativos, aliás, isto mesmo preveem as leis penais.
A vida é como um jogo, que em cada fase e atividade se inicia com determinadas regras, que são cumpridas pelas partes e se não o forem haverá sanções. Tal como em qualquer outra competição, não se pode, nem deve, mudar regras a meio do jogo, exceto se tais mudanças implicarem benefícios para os “jogadores”, na circunstância, para os cidadãos. Se assim não for, poder-se-á estar perante decisões ilegítimas, ilegais e de abuso do poder.
Iniciar uma qualquer atividade com determinadas regras jurídicas, que as entidades públicas, legislativas, executivas e fiscalizadoras obrigam a que sejam cumpridas e que ao longo desse exercício, a pessoa, o profissional, a empresa, as instituições em geral, são obrigadas a cumprir e, em circunstância alguma deve alterar, unilateralmente, aquilo que também, unilateral impôs de início. Há um mínimo de rigor, de lealdade, de confiança e de decência que, ética e moralmente, se exige seja cumprido.
Nesta linha de pensamento, os cidadãos projetam as suas vidas, o seu futuro, também, e ainda que parcialmente, o de seus dependentes e descendentes. A pessoa constrói um projeto de vida em função do que lhe é oferecido, do que lhe é exigido, que ela cumpre rigorosa e pontualmente porque, mais à frente na vida, sabe que vai precisar de determinadas condições, benefícios materiais, que previamente acordou, com a outra parte, vir a receber, por exemplo, na velhice mas, de repente, tudo lhe é retirado, com a alegada “emergência nacional”. Verifica-se, assim, uma quebra de confiança provocada pela parte mais forte: o Estado.
Convém referir que o “estado de emergência” é uma figura constitucional: «2. O estado de sítio ou o estado de emergência só podem ser declarados, no todo ou em parte do território nacional, nos casos de agressão efectiva ou iminente por forças estrangeiras, de grave ameaça ou perturbação da ordem constitucional democrática ou de calamidade pública» (CRP, 1976:Artº 19º), que nada tem a ver com a emergência económica, portanto suspender ou retirar direitos que foram adquiridos, parece uma grande injustiça, para além de, eventualmente, inconstitucional.
A insegurança do Direito conduz às falências pessoais, empresariais, económicas e financeiras. Ninguém vai investir num projeto cujas regras são unilateralmente eliminadas ou substituídas por outras mais severas, injustas e, quantas vezes, irregulares.
Como é possível que a um trabalhador que paga coercivamente os seus impostos, que contribui para uma segurança social, assistência médica e medicamentosa, que desconta para ter outros benefícios, para uma velhice relativamente tranquila, de repente se veja sem esses benefícios que subscreveu, com a outra parte, no início da sua atividade profissional? Não é leal, nem justo “alterar as regras a meio do jogo”, porque isso equivale a um autêntico “logro”, com a agravante da parte prejudicada não se poder defender.
As decisões unilaterais, autoritárias, prepotentes e violentas não são próprias de uma sociedade civilizada, democrática e defensora dos mais elementares direitos humanos e, quando se verifica a imposição do mais forte, regride-se ao tempo das cavernas, em que os mais poderosos têm o domínio completo sobre os mais fracos, que não têm recursos para se defenderem.
A sociedade atual, em muitos países, bem poderá equiparar-se a uma selva, onde a lei do mais forte, do “quero, posso e mando” é a que prevalece, com base na fraqueza de um Direito instável porque, rápida e frequentemente, alterável, em função de interesses alheios ao bem-estar do povo em geral e dos mais fracos em particular, com a agravante de que algumas entidades fiscalizadoras, que deveriam ser as primeiras a zelar pela segurança do direito, nem sempre conseguem cumprir a sua missão, com solidariedade e lealdade para com os contribuintes mais desprotegidos.
A instabilidade do Direito é ainda mais preocupante, quanto é certo que quando ocorrem alterações na legislação, elas contemplam um conjunto, por vezes muito vasto, de exceções e, quando se trata da perda de benefícios e direitos adquiridos, aquelas exceções, com alguma frequência, abrangem quem já tem imensos privilégios.
Em bom rigor são, praticamente, sempre os mesmos a suportar as medidas mais penosas: trabalhadores, reformados, pensionistas e desempregados. Além desta inquietante insegurança do Direito, ainda acresce a discriminação negativa, ou seja: os privilegiados e protegidos continuam, na sua maioria, incluídos nas exceções para os benefícios e direitos adquiridos, mantendo-os ou até reforçando-os.
Pode-se afirmar que há uma grande falta de solidariedade e de lealdade daqueles que prometem e depois não cumprem. A palavra de honra, que em termos de honestidade, valia mais do que qualquer escritura, hoje, ao que parece, é apenas um “valor” para estratégias de sedução política.

Bibliografia

BÁRTOLO, Diamantino Lourenço Rodrigues de, (2012). Direitos Humanos: Alicerces da Dignidade. 1ª Edição, Lisboa: Chiado-Editora.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA, (1974), Versão de 2004. Porto: Porto Editora.

Diamantino Lourenço Rodrigues de Bártolo

Telefone: 00351 936 400 689
Portugal: http://www.caminha2000.com m (Link’s Cidadania e Tribuna)

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