domingo, 15 de novembro de 2015

Religião e Valores Culturais


O homem, desde sempre, tem sentido a necessidade da vivência experienciada da religião, mesmo aquele que não acredita no poder transcendental da Divindade, em situações-limite, recorre ao Absoluto, qualquer que este Absoluto seja, indiferentemente do processo e fórmula utilizados, o homem, desesperadamente esperançado, ainda luta para sair da situação-limite, independentemente da solução adotada, mesmo que esta aponte para o suicídio.
A religião não poderá ser um valor a ignorar, porque ela faz parte integrante da vida, mesmo que cada um a pratique à sua maneira, constituindo assim uma dimensão vital das diversas e universais culturas. O valor religioso é intrínseco ao valor cidadania e nenhum governo do mundo poderá ignorar esta dimensão cultural dos cidadãos.
Em boa verdade: «Os actuais direitos fundamentais do homem e do cidadão, que têm consagração na maioria das constituições dos diversos Estados da Comunidade Internacional, foram o desenvolvimento e esclarecimento de um direito fundamental que funcionou como um autêntico embrião de todos os outros: o direito à liberdade religiosa, ao livre e público exercício de profissões de fé minoritárias sem a perda de quaisquer direitos civis, nem qualquer espécie de segregação movida pelo estado ou por particulares, daí decorrentes. (SOROMENHO-MARQUES, 1996: 77).
Se é verdade que as filosofias políticas dos finais do séc. XVIII, se preocuparam com a necessidade de fundar o poder e a legitimidade do Estado, não será menos certo admitir, hoje, a inevitabilidade da dimensão religiosa, e que esta tem cada vez uma maior importância na vida, de tal forma que se o fenómeno da proliferação das seitas é um facto, também é exato que as Igrejas das principais e tradicionais religiões se esforçam, pelo menos nas pessoas dos seus máximos representantes, por uma consensualização de posições, no respeito e tolerância pelos princípios e dogmas, que a cada uma dizem respeito.
Neste caminhar na busca de consensos, também os governos devem colaborar, através da consagração legislativa e, na prática, pelo reconhecimento da cultura religiosa da sociedade, procurando firmar um compromisso entre as minorias religiosas e o próprio Estado, aliás, pode-se aceitar, de boa-consciência, que foram benéficos os resultados constitucionais das revoluções americana e francesa, ao consagrarem nos direitos dos cidadãos a liberdade religiosa, partindo da tolerância religiosa para o reconhecimento dos direitos humanos fundamentais.
Com efeito: «Desta forma, a questão religiosa, no final do século XVIII, revelou toda a grandeza e significado para a cidadania. O reconhecimento da liberdade religiosa só poderá ser assegurado no interior de um sistema constitucional de liberdades e garantias fundamentais. (...) Não é no temor a Deus que se revela a grandeza dos homens, mas sim na capacidade de honrar as leis que a si próprio se deram. Essa é também a dignidade do cidadão.» (Ibid:78).
Desprevenidamente, aceita-se, como sendo um lugar-comum, quando se fala de cultura, quando se tenta, por vezes intencional e desinteressadamente, classificar quaisquer situações, fenómenos, atos, atitudes, tradições, usos e costumes, como cultura, envolvência cultural, porém, quando se trata de reconhecer, em favor de uma determinada minoria, valores, atividades, comportamentos e princípios, como seus direitos inalienáveis e integrantes da cultura dessa minoria, surgem as evasivas de quem tem o direito de decidir a favor delas, escuda-se em argumentos político-constitucionais, vazios legislativos ou na irrelevância quantitativa dessa mesma minoria.
Pode-se concordar, ou não, sobre a utilidade das definições, argumentando que elas são redutoras, fechadas, dogmáticas ou, pelo contrário, que são um ponto de partida, um primeiro conceito, uma referência, todavia, não parece viável trabalhar-se no vazio, na indefinição.
Com o objetivo de, pelo menos, partir-se de algum ponto, analisem-se algumas ideias, segundo as quais, a cultura está presente na evolução da sociedade política: «Alguns antropólogos e alguns cientistas políticos, tanto quanto outros cientistas sociais, quase chegam a identificar o político com o cultural. (...) alguns estudiosos têm-se impressionado com o facto de que a maior parte das normas políticas existe não porque sejam sancionadas pela força, mas porque foram incutidas nos jovens no decorrer da sua criação como parte do processo de enculturação.» (FRIED, 1967:14-17).
Naturalmente que a complexidade da sociedade humana pode motivar as mais elaboradas teorias, conduzir à defesa de teses muito bem construídas, à idealização de uma sociedade pretensamente perfeita mas, quaisquer que sejam os argumentos, é incontornável esta dimensão cultural, porque ela é parte intrínseca à humanização.
No contexto de uma sociedade humanizada, a noção de cultura assume desenvolvimentos diferentes: «Na linguagem comum, o homem culto seria aquele que tem instrução, teve acesso à produção intelectual da civilização a que pertence (ciência, filosofia, literatura, artes em geral. (…) No sentido antropológico, cultura é tudo o que o homem faz, seja material ou espiritual, seja pensamento ou acção. (...) A cultura é, portanto, o que resulta do trabalho humano: a transformação realizada pelos instrumentos, as ideias que tornam possível essa transformação e os produtos dela resultantes.» (ARANHA, 1996:14-16).
De facto, é impossível dissociar a dimensão cultural do homem, quaisquer que sejam as suas vertentes: política, ideológica, religiosa, filosófica, científica, instrumental, na medida em que esta diversidade enriquece, na complexidade da sociedade, a dignidade que, indiscutivelmente, deve caracterizar o ser humano e, indo mais longe, com a ajuda da Profª. Maria Lúcia Aranha desenvolver-se-ia, de seguida, aquilo a que ela chama as três esferas da cultura, concluindo este tema ligando a cultura à educação, na medida em que se apresenta, cada vez mais evidente, que o reconhecimento das diferenças passa, necessariamente, por uma filosofia da educação.
Agora e sempre, a Filosofia em evidência: «Relações de Trabalho, que são materiais, produtivas e caracterizadas pelo desenvolvimento das técnicas e actividades económicas; Relações Políticas, ou seja, as relações de poder, que possibilitam a organização social e a criação de instituições sociais; Relações Culturais ou comunicativas que resultam da produção e difusão do saber e deveriam pertencer ao âmbito das relações intencionais, reduto da subjectividade. (...). A Educação é, portanto, fundamental para a socialização do homem e sua humanização. Trata-se de um processo que dura a vida toda e não se restringe à mera continuidade da tradição, pois supõe a possibilidade de rupturas pelas quais a cultura se renova e o homem faz a história.” (Ibid.:17).
Sem prejuízo de outras posições, tanto ou mais contributivas para o reconhecimento oficial e geral do multiculturalismo, ficou patente na abordagem descrita que a cultura constitui um bem natural e precioso para a humanidade, um valor de humanização que não se pode, em nenhuma circunstância, subestimar, pelo contrário, todos têm a obrigação de preservar, aperfeiçoar e cada vez mais, praticá-la, na vida quotidiana, intercambiando, entre povos, de todo o mundo.
A civilização Ocidental, pode ser vista como uma macrocultura, e a questão que é colocada é a de responder: «até que ponto e precisamente como o conteúdo dos direitos humanos, tal como os conhecemos na sua totalidade, serve como transportador da civilização ocidental e em oposição a outras civilizações com um desvio, claramente ocidental, relativamente expresso e consistente.» (GALTUNG, 1994:24).
Acresce a todo o desenvolvimento que, no âmbito do reconhecimento do direito à diferença cultural, existem vários instrumentos legais internacionais, nos quais Portugal é parte contratante, invocando-se, na circunstância, o “Convénio Internacional relativo aos Direitos Económicos, Sociais e Culturais”, mencionando-se alguns artigos mais específicos nesta temática.
É assim que, logo no primeiro artigo se declara que: «1. Todos os povos têm direito de dispor de si mesmos. Em virtude desse direito, eles determinam livremente o seu desenvolvimento económico, social e cultural. 2. Para atingirem os seus fins todos os povos podem dispor livremente das suas riquezas e dos seus recursos naturais...» e, no seu artigo segundo: «2. Os Estados partes do presente Convénio comprometem-se a garantir que os direitos aqui enunciados serão exercidos sem nenhuma discriminação fundamentada na raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou qualquer outra opinião, origem nacional ou social, fortuna, nascimento ou qualquer outra situação.» (in, HAARSCHER, 1993:183).
Avançando na análise deste importante documento, encontram-se, concreta e especificamente, normas que reconhecem, de forma inequívoca, o direito à cultura, aliás o artigo quinze é claríssimo: «Artº 15º. 1. Os Estados partes do presente Convénio reconhecem a todo o indivíduo o direito: a) De participar na vida cultural; b) De beneficiar do progresso científico e das suas aplicações; c) De beneficiar da protecção dos direitos morais e materiais resultantes de toda a produção científica, literária ou artística de que for autor.» (Ibid.:189).
É possível fundamentar os valores humanos a partir de uma argumentação religiosa: «A sociedade secular também tem interesse em que os valores humanos, o humanum, preservem o seu direito de cidadania no âmbito de uma religião e, neste caso, da religião católica (...). O humanum só poder ser salvo na medida em que a sua justificação for encarada em termos de divinum.» (KÜNG, 1990:156).

Bibliografia

ARANHA, Maria Lúcia Arruda, (1996). Filosofia da Educação. 2a Ed. São Paulo: Moderna.
FRIED, Morton H. (1967) A Evolução da Sociedade Política: Um Ensaio sobre Antropologia Política. Trad. Luís F.D. Duarte. Rio de Janeiro/RJ: Zahar Editora.
GALTUNG, Johan, (1994). Direitos Humanos – Uma Nova Perspectiva. Trad. Margarida Fernandes. Lisboa: Instituto Piaget.
HAARSCHER, Guy, (1993). A Filosofia dos Direitos do Homem. Trad. Armando F. Silva. Lisboa: Instituto Piaget.
KUNG, Hans, (1990). Projecto para uma Ética Mundial, Trad. Maria Luísa Cabaços Meliço, Lisboa: Instituto Piaget.
SOROMENHO-MARQUES, Viriato, (1996). A Era da Cidadania. Mira-Sintra: Publicações Europa-América.

Diamantino Lourenço Rodrigues de Bártolo
Telefone: 00351 936 400 689

Imprensa Escrita Local:  

Jornal: “O Caminhense”
Jornal: “Terra e Mar”

Portugal: http://www.caminha2000.com (Link’s Cidadania e Tribuna)

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