domingo, 15 de dezembro de 2019

Evolução da História


Parece existir grande consenso sobre a determinação espácio-temporal da génese da História, e que segundo o mesmo assentimento, ela terá surgido da antiga Grécia, a partir de uma tentativa para passar de uma explicação mitológica dos factos para uma interpretação mais racional, mais humana, o que implica que nas origens da História se possa encontrar a influência da Filosofia, tendo sido Heródoto o seu principal impulsionador, que toma a seu cargo a tarefa de consultar as testemunhas oculares dos acontecimentos que narra, resultando numa maior dose de verdade das narrativas, às quais ele próprio resolve chamar de História.
A historiografia grega não ultrapassou muito a crónica, predominando uma orientação filosófica sustentada por Platão e Aristóteles, e porque os principais historiadores, Heródoto e Tucídides não foram capazes de fornecer, em relação ao passado, mais que informações imprecisas.
A finalidade do estudo histórico nos gregos era contribuir para a formação da polis, através da memória da ação do homem no passado, verificando as causas da guerra. De uma maneira geral, os historiadores gregos, já apontados e ainda um outro chamado Políbio, não conseguiram libertar-se, totalmente, dos efeitos da Mitologia e da Filosofia, conferindo às suas narrações um certo cunho determinista, subordinando, excessivamente, a ação do homem ao meio e aos deuses.
Apesar de tudo, os gregos deram passos significativos para a elaboração de uma teoria da história e, paulatinamente, foram passando de um teocentrismo crítico para um antropocentrismo racional, colocando o homem no centro das preocupações filosóficas, sendo de realçar o contributo dos sofistas e de Sócrates.
Na época cristã medieval, a História assume uma nova dimensão, face à influência dos textos sagrados da Bíblia, que se tornaram relevantes para a teoria da história, afirmando-se, claramente, a unidade da espécie humana, a irreversibilidade do tempo, em oposição ao tempo mitológico, cíclico, tornando-se num tempo linear, procurando alcançar uma meta, no sentido do progresso, defendendo-se a dualidade da sua fundação, porque se considera que a História é obra de Deus e do Homem e, finalmente, a defesa do conceito cristão da incomparável dignidade da pessoa humana. Sempre a pessoa em destaque, na sua dimensão mais humanista.
Durante esta época, a História desenvolve-se muito à volta da vida dos santos, é a chamada Hagiografia, e que tinha como principal interesse e objetivo, descrever a vida de grandes homens, cujos exemplos de abnegação e sacrifício, em defesa duma religião e de Cristo, deveriam servir de guias orientadores para os vindouros, tal como os gregos a perspetivaram para a formação dos governantes da polis.
Com o Renascimento a História comporta novas influências, no sentido da revolução da mentalidade, encaminhada agora para que o homem atingisse a maioridade e que, segundo Kant, seria alcançada no século XVIII, com o iluminismo. É assim que o homem se desprende mais da divindade, para se agarrar à vida terrena, reduzindo-se o papel de Deus e dando-se ênfase à condição humana.
É no período das Luzes e, como consequência, de todo um movimento expansionista da Europa que se verificam grandes acontecimentos, dignos de registo histórico: o desenvolvimento das ciências, os grandes inventos, enfim, todo um conjunto de factos que impulsionam as técnicas a todos os níveis. A História teve de acompanhar este movimento ascensional.
No campo religioso acentua-se a mentalidade iniciada no Renascimento, no Humanismo e na Reforma, difunde-se uma religião sem dogmas. Verifica-se um grande desnível entre os séculos XVII e XVIII. No primeiro, o homem é profundamente cristão, dogmático; pelo contrário, o homem do século XVIII é anticristão, defende o direito natural e relega para segundo plano o direito divino.
Estes movimentos repercutem na História algumas dificuldades na sua evolução, já que os iluministas eram a-históricos, não lhes interessando o passado, apenas consideravam o presente, como ponto de partida. Não obstante esta posição anti-histórica, o século XVIII produziu alguns historiadores, tais como David Hume, Condorcet, Montesquieu.
Fizeram-se reflexões sobre a História, pretendeu-se explicar a História através da razão, acentua-se a corrente naturalista. A História vai, assim, evoluindo no sentido mais profano, mais tecnicista para, finalmente, desembocar no positivismo de Augusto Comte, no século XIX e aqui sofre, pela primeira vez, a sua grande transformação: quer no que se refere aos seus objetivos; quer quanto aos métodos. É o Positivismo, período de grande salto histórico, a partir do qual a História entra, definitivamente, no grande mundo das ciências.
Os positivistas exigem da História filiação racional, elevação para além do individual, formulação de leis absolutas, objetivas e universais. Eles, os positivistas, partem das fontes e da sua crítica interna para delas extrair os factos. A erudição afirma-se, a formação profissional do historiador apura-se e desenvolve-se, exaustivamente, a crítica da proveniência, da autenticidade e da exatidão das fontes.
A História torna-se ciência de laboratório, em que o historiador é um observador passivo, uma espécie de fotógrafo do passado, o dado histórico é perfeitamente objetivo, basta apreendê-lo e reconstruir com “tesoura e cola”. A História positivista dá primazia ao facto político e secundariza os aspetos económicos, sociais e culturais.
É uma História factual, que reconhece que os fenómenos políticos dominam os fenómenos profundos da vida económica, intelectual e social. Não obstante as transformações que os positivistas tentaram introduzir, a caraterística da História do século XIX é a da História Normativa, tal como no século XVIII, onde, por vezes, romanesco e histórico se confundem. Esta História é uma história objetiva, individualizante, evoca a Idade Média e glorifica a Pátria.
Valerá a pena tentar interpretar o conceito de História, através de alguns autores, deste século XIX. Assim, para Alexandre Herculano: «História, não tanto dos indivíduos como da nação; História que não ponha à luz do presente o que se deve ver à luz do passado; História que ligue os elementos diversos que constituem a existência de um povo em qualquer época, em vez de ligar um ou dois desses elementos, não com os outros que com ele coexistirem, mas com os seus afins na sucessão dos tempos, graduados pelos topos cronológicos, com massa de papel feita das folhas da arte de verificar as datas.» (HERCULANO, 1842: 37-38; 100-103).
Para outro autor, Hegel, que não sendo propriamente um historiador, deu, no entanto, o seu conceito sobre a História, e que para o qual a História seria a “odisseia do Espírito”. Apesar de tudo, a História ainda não é a História do passado humano, não é a História do homem ou dos homens e, como tal, ela procura evoluir no sentido de cumprir o melhor possível os objetivos que lhe são próprios, pelos métodos científicos que a caracterizam e que melhor se adequem à concretização da sua objetividade.
O século XX ficará na história da História como o século do arranque final de uma nova História, contra uma pseudo-História, contra a História dos privilegiados, contra os métodos tendenciosos, comprometidos e corruptos, utilizados por certo tipo de historiadores.
De facto, a História assumiu, definitivamente, o seu lugar entre as ciências humanas. Uma História que se viu apoiada no início daquele século pela Sociologia de Émile Durkheim,  pela Geografia Humana de Albert Demangeon e Vidal de la Blache, ela evoluiu na Sociologia, na Economia e no Espaço.
Em consequência da grande crise do mundo capitalista de 1929, Lucien Febvre  e Mark Block lançaram a revista "Annales d'histoire économique et sociale”, reagindo, firmemente, ao monopólio da História política institucional, factual e determinista dos positivistas.
É uma História explicativa, renovadora da problemática das suas fontes, técnicas e métodos, captando a realidade social e eleva-se até à história comparada das civilizações. É uma História Total, interessando-se tanto pelo passado como pela atualidade.
Ela trata de promover o conhecimento da situação económica, chama a atenção para os grupos sociais, sua estratificação e relações entre si, para as interações existentes entre os diferentes níveis da realidade histórica – o económico, o social, o cultural, o religioso.
Entretanto, em 1946 os “Annales” tomam nova designação: “Annales, Economies, Sociétés, Civilizations. Mais do que nunca os “Annales” querem fazer compreender, pôr problemas, construir uma História Problemática.
Uma História regressiva, que permita compreender o presente pelo passado e, igualmente, o passado pelo presente: «De entre as coisas passadas, mesmo aquelas – crenças desaparecidas sem deixar o menor rasto, formas sociais malogradas, técnicas mortas – que, como parece, deixaram de dirigir o presente, iremos considerá-las inúteis para a sua compreensão? Seria esquecer que não há verdadeiro conhecimento sem um certo teclado de comparabilidade ao mesmo tempo diferentes e, contudo, apresentadas. Ninguém poderá dizer que não seja assim.» e, ainda: «A incompreensão do presente, nasce fatalmente, da ignorância do passado» (cf. BLOCK, 1982:39-46)
Uma História explicativa, comparada. Ela renova-se integralmente, quer a nível da problemática, quer a nível da metodologia quer, ainda, pela aparição no campo da História, aliás, já em 1869, Michelet faz uma referência à Nova História, apelando para duas orientações essenciais: uma, História da cultura material, interessando-se pelo clima e alimentação; a outra, uma História mais espiritual, dos costumes, anunciando a História Antropológica.
A Nova História, é a História de todos, de todos os homens, sem privilégios, História de estruturas de movimentos. Esta História destrona facilmente a História Política e aproxima-se da Antropologia, Economia, Geografia, Sociologia, Psicologia, Ciências Exatas.
Segundo Jaime Cortesão: «Uma antiquada conceção, cuja carreira não terminou de todo em Portugal, faz consistir a História na evocação dos homens e dos eventos singulares, faustosa galeria de retratos e painéis de batalhas, a que se acrescenta quando muito o quadro das instituições» (CORTESÃO, 1964:13). Esta História já não tem justificação moral, verídica e científica.
Numa linha de orientação muito semelhante, REGLÁ defende que: «No nosso tempo os historiadores protagonizam uma autêntica revolução metodológica, destinada, primordialmente a alcançar a maior aproximação possível entre a História como ciência e a vida humana como realidade, que consiste em adequar a História à vida.» (1970:13-14).
Por outro lado, Simiand, em 1903 denuncia os três ídolos da tribo dos historiadores: o ídolo político – preocupação geral pela história política; o ídolo individual – hábito de conceber a História como a história dos indivíduos e, por fim, o ídolo cronológico – costume dos historiadores se perderem nos estudos das origens. (cf. SIMIAND, 2003)
Finalmente, a Nova História, relaciona-se com o Marxismo, o qual apela à noção de estrutura, periodizando a História em: Esclavagismo, Feudalismo e Capitalismo que, segundo ele, constitui uma teoria de longa duração.
A Nova História interessa-se pelo que é constante, durante longo espaço de tempo, prefere o facto regular, daí que em 1932, Labrousse distinga três tipos de movimentos: Longa Duração, Oscilação Cíclica e Variações Sazonais. É necessário estudar o que muda lentamente, a estrutura.
Segundo Braudel, pode-se distinguir no tempo histórico três níveis diferentes: «À superfície, uma História dos eventos, inscreve-se no tempo curto; é uma micro-história. A meia encosta, uma história da conjuntura, desenvolve-se a um ritmo mais largo e mais lento. Até hoje ela foi estudada no plano da vida material, dos ciclos ou intercíclos económicos. Para além de tal recitativo da conjuntura, a história estrutural, ou de duração longa, respeita a séculos inteiros, situa-se no limite do movente e do imóvel e, pelos seus valores estáveis durante muito tempo, parece invariável relativamente às outras histórias, que se escoam e realizam mais rapidamente e que, em suma, gravitam em torno dela». (BRAUDEL, 1958, in: GURVITCH, 1977: 92-93).
É possível resumir os três níveis diferentes do tempo histórico, da seguinte forma: a) Acontecimentos – Factos ocasionais, efémeros, aparentemente independentes, localizando-se a tempo curto, ou de curta duração; b) Conjunturas – Acontecimentos que interessam enquanto elementos de uma série que se interrelacionam na medida em que permitem chegar às variações conjunturais. As conjunturas dizem respeito às oscilações cíclicas, ao tempo de média duração. Há conjunturas sociais, políticas, económicas, culturais, religiosas, etc. São pedaços da História; c) Estruturas – São realidades estáveis e permanentes, quase imóveis. Nestas realidades, aceitam-se as sujeições impostas pelo meio geográfico, pelas hierarquias sociais, pelas mentalidades coletivas, pelas necessidades económicas. O estudo da estrutura, é o estudo do residual.
Pode-se considerar, portanto, que a História Tradicional, a História Conjuntural e a História Estrutural, constituem unidades de medida diferentes. A História Tradicional seria a história de boatos; a História Conjuntural, história de blocos e a História Estrutural, história de movimentos plurisseculares.
A evolução historiográfica foi influenciada pela técnica, métodos e vocabulário de sociologia, da linguística, da política, da economia, surgiu a história serial, a história qualitativa e quantitativa.
A Nova História ou História Total, tende para a História Global, com o auxílio das séries e das estatísticas, muito ficando a dever à quantificação que passa da curta para a longa duração.


BLOCK, Marc, (1982). Introdução à História. 4ª Edição. Tradução, Maria Manuel e Rui Grácio. Sintra: Publicações Europa-América
CORTESÃO, Jaime, (1964). Os Factores Democráticos na Formação de Portugal. Lisboa: Livros Horizonte. (1ª ed. 1930).
GURVITCH, Georges, (1977). Histoire et Sociologie, in: Traité de Sociologie. Tomo I. São Paulo-Brasil: Livraria Martins Fontes
HERCULANO, Alexandre, (1842). Cartas sobre a História de Portugal. Opúsculos. Tomo V, 4ª ed. Carta I 37-38; Carta IV 100-103.
REGLÁ, Juan, (1970). Introdução à História. Barcelona: Teide.
SIMIAND, François, (1903). Método Histórico e Ciências Sociais. Tradução, José Leonardo do Nascimento. Bauru/SP: Edusc.2003.

Com o protesto da minha perene GRATIDÃO

Diamantino Lourenço Rodrigues de Bártolo

Presidente do Núcleo Académico de Letras e Artes de Portugal

Sem comentários: