sábado, 25 de março de 2023

Defesa da Autonomia do Brasil

                Na sua ação política, Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846) orientou-se pelos princípios teóricos que idealizara. Como estadista, é um partidário do Estado liberal, tal como por vezes é definido: «O pressuposto filosófico do Estado liberal, entendido como um Estado limitado em contraposição ao Estado absoluto, é a doutrina dos direitos do homem elaborada pela escola do direito natural (ou jusnaturalismo): doutrina segundo a qual o homem, todos os homens, indiscriminadamente, têm por natureza (...) certos direitos fundamentais como o direito à vida, à liberdade, à segurança, à felicidade.» (BOBBIO, 1988:11).

Independentemente de se aplaudir ou não o regime político da Monarquia Constitucional Representativa, e o sistema económico-social liberal, defendidos por Pinheiro Ferreira – ainda que acusado por alguns autores de «ter ensinado doutrinas revolucionárias», (GRAND LAROUSSE ENCYCLOPEDIQUE, s.d.: 505), a verdade é que o Brasil adotou, nas suas leis fundamentais, os valores liberais e democráticos por ele perfilhados e divulgados.

Existe uma forte relação entre os valores e direitos defendidos por Silvestre Ferreira, e os que foram aprovados na Constituição do Brasil de 25 de março de 1824, estabelecendo esta no seu Artº. 179 que: «a inviolabilidade dos Direitos Civis e Políticos dos Cidadãos Brazileiros, (...) têm por base a liberdade, a segurança individual e a propriedade.» (CAMPANHOLE & CAMPANHOLE, 1987:674).

Da Constituição Imperial de 1824 à Constituição Federal de 1988, decorre um período de tempo de 164 anos, e profundas alterações políticas, sociais, culturais e económicas ocorreram no Brasil. Contudo, é interessante registar que no âmbito dos direitos naturais, tais como foram defendidos por Pinheiro Ferreira – a liberdade individual, a segurança pessoal e a propriedade real – eles mantêm-se no capítulo dos “Direitos e Deveres Individuais e Colectivos” da Constituição Federal do Brasil: «Art. 5º. - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. (LOPES, 1999:2-3).

É certo que houve períodos na História Brasileira, pós-independência, em que, tal como em Portugal, predominaram princípios e valores caraterísticos das ditaduras: no Brasil, os períodos de 1891-93 (Floriano Peixoto), 1930-34, 1937-45 (Getúlio Vargas), 1968-85 (Regime Militar). Não obstante essas vicissitudes, desde os primeiros momentos da independência, o liberalismo é a força ideológica do Brasil político como o mostram, à saciedade, as Constituições de 1824, 1891, 1934, 1946 e 1988. (BARRETO, 1990:139).

Um outro aspeto importante a salientar é a sensibilidade de Silvestre Ferreira às pretensões autonomistas do Brasil. No parecer que ele deu a D. João VI contido no estudo “Sobre os abusos gerais e modo de os reformar e prevenir a revolução popular”, a propósito de uma eventual lei de divisão do Reino de Portugal e seus territórios do Brasil, Ásia e África, existe uma “Nota”, apresentada sob forma de providência cautelar a ter em consideração pelo Monarca, que o aconselha a reconhecer uma certa autonomia e independência ao Brasil, no caso dessa divisão se consumar. (cf. FERREIRA, 1814/15a:7) ([1])

Conhece-se a posição de Silvestre Ferreira sobre alguns dos direitos fundamentais, naturais ou absolutos, entre os quais se destaca a liberdade: seja individual; seja nas suas diferentes aplicações (de pensamento, de expressão, de circulação, de profissão, de residência, etc.). O conceito de liberdade individual desenvolve-se por quatro tipos, ou seja: a liberdade de correspondência e manifestação; liberdade de residência e indústria.

A propósito da liberdade individual, Pinheiro Ferreira não só a considera essencial, como estabelece uma certa relação entre ela e a atividade profissional do cidadão: «A livre escolha no objecto e no modo de emprego das nossas famílias industriais constitui um dos essenciais elementos da liberdade individual: e é sabido que este, assim como os demais direitos, não têm outro limite que não seja o da lei do justo, que se cifra em não se ofender os legítimos interesses de terceiros, quer este seja algum indivíduo particular, quer seja o Estado.» (FERREIRA, 1844:277).

A liberdade, genericamente considerada, é difícil de concetualizar; Pinheiro Ferreira contornou este obstáculo, especificando as liberdades de acordo com os objetivos a alcançar; e muito embora tenha elaborado uma breve definição, esta deixa uma sensação de insuficiência, e o problema poderá não ter ficado resolvido, quando se procura uma extensão completa, e total, ao domínio dos direitos humanos, conforme se julga inferir da seguinte noção: «Os espíritos que, na presença de muitos motivos, obram umas vezes por um, e outras vezes por outro desses motivos, chamam-se livres: a faculdade de assim proceder chama-se liberdade; e cada um desses actos chama-se escolha.» (FERREIRA, 1839:25). ([2])

Silvestre Ferreira defende que é a lei que deverá garantir, ao indivíduo, o seu direito de exercício das várias liberdades. Se relativamente às liberdades de correspondência, de indústria e de residência, a lei poderá objetivar-se com mais rigor, outro tanto não será possível quanto à liberdade de pensamento.

A manifestação do livre pensamento por palavras orais não terá o mesmo efeito que por palavras e desenhos escritos: aquelas diluem-se e esquecem-se no tempo, estes permanecem longamente. No âmbito escrito, anotem-se estilos e meios que, dirigindo-se a populações-alvo diferentes, produzem efeitos diversos. A palavra oral é mais perigosa porque, envolvida com sentimentos e emoções fortes, conquista, rapidamente, as classes menos letradas e as consequências são, por vezes, desastrosas.

A lei, na perspetiva de Pinheiro Ferreira, devia garantir a cada cidadão a fruição dos seus direitos naturais, com salvaguarda do dever de cooperação para a manutenção daqueles direitos, a fim de não prejudicar a lei do justo no sentido do maior bem possível: de quase todos e de cada um em particular. No entanto, o autor propõe algum condicionalismo no cumprimento dos deveres: «Os deveres que a lei impõe ao cidadão não podem estender-se além dos sacrifícios e encargos indispensáveis para assegurar a fruição do bem comum em conformidade com a lei do justo.» (FERREIRA, 1836:2).     ([3])

 

Bibliografia

 

BARRETO, Vicente, (1990). “Liberalismo e Autoritarismo no Pensamento Republicano”, in Revista Presença Filosófica. Rio de Janeiro: Sociedade Brasileira de Filósofos Católicos, (1 e 2), jan./jun. Pp.139-147.

BOBBIO, Norberto, (1988). Liberalismo e Democracia. Tradução, Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Brasiliense. Pp.11-17, 42-55, 68-71, 79-91.

CAMPANHOLE, Adriano; CAMPANHOLE, Hilton Lobo, (1987). “Constituição de 25 de março de 1824”, Artº 179º, in Constituições do Brasil. 9a Ed. São Paulo: Editora Atlas S. A. pp. 674-676.

FERREIRA, Silvestre Pinheiro (1814-15a) in Celina Junqueira (Dir.) (1976) Silvestre Pinheiro Ferreira, Cartas sobre a Revolução do Brasil, Memória Políticas sobre os Abusos Gerais e modo de os Reformar e Prevenir a Revolução Popular Redigidas por Ordem do Príncipe regente no Rio de Janeiro em 1814 e 1815, Vol. VII, prefácio de Vicente Barreto, Rio de Janeiro: Editora Documentário: Pontifícia Universidade Católica: Conselho Federal de Cultura, Colecção Textos Didácticos do Pensamento Brasileiro.

FERREIRA, Silvestre Pinheiro (1836) Declaração dos Direitos e Deveres do Homem e do Cidadão. Paris: Rey et Gravier,

FERREIRA, Silvestre Pinheiro (1839) Noções Elementares de Philosophia Geral e Aplicada às Ciências Morais e Políticas: Ontologia, Psychologia, Ideologia. Paris: Rey et Gravier. 

FERREIRA, Silvestre Pinheiro (1844) “Questões de Direito Público e Administrativo, Filosofia e Literatura”, in José Esteves Pereira, (1996) Silvestre Pinheiro Ferreira, Textos Escolhidos de Economia Política e Social (1813-1851) Lisboa: Banco de Portugal.

GRAND LAROUSSE ENCYCLOPEDIQUE en dix volumes, (s.d.). “Pinheiro Ferreira, Silvestre”, Tome huitième, Paris: Libraire Larousse, PIN/505.

LOPES, Maurício António Ribeiro (Coord.), (1999). A Constituição Federal do Brasil-1988. 4a Ed. revista e actualizada. S. Paulo: Editora Revista dos Tribunais, Artº. 1o a 17o p. 1 a 18, Artºs. 193o a 250o, pp.90 a 108.

 

“NÃO, à violência das armas; SIM, ao diálogo criativo. As Regras, são simples, para se obter a PAZ”

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Venade/Caminha – Portugal, 2023

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([1]) Cf. Alínea e) – «Dois são os fins desta quarta providência: O primeiro é assegurar a V.A.R. e aos seus augustos sucessores no império do Brasil, o exercício do Poder legislativo no reino de Portugal, sem que aqueles povos se julguem por isso reduzidos à categoria de colónia, ou de algum modo minorado na independência, que de direito compete àquele reino». (Ibid.:7).

([2]) Na nota de rodapé ao parágrafo 156 da Ideologia, Pinheiro Ferreira faz uma crítica aos filósofos que elaboram definições utilizando argumentos sofismáticos e viciosos. A propósito da liberdade escreve «(1) São exemplo desta sorte de sofismas os argumentos com que alguns pseudo-filósofos têm pretendido combater a liberdade do homem. Todos eles se fundam na falsa definição que se costuma dar de liberdade a saber: o poder de obrar ou não obrar, segundo a nossa vontade. E depois define-se vontade o poder de se determinar a alguma acção por motivo de algum bem. Donde, aqueles filósofos concluíram que a liberdade é a faculdade de nos determinarmos, na presença de vários bens, por aquele que nos agrada mais. Logo, dizem, eles sendo um só esses que nos determina, não há opção e logo não há liberdade. Toda a discussão cessa no momento em que se admitir a definição que havemos dado de liberdade no parág. 70 da Ontologia;» (Idem.: 46).

 

([3]) O Artº. 4º da ob. cit., refere: «todo o sacrifício que se exigir do cidadão, sem seu consentimento expresso ou tácito, deve ser considerado como infracção dos direitos naturais do cidadão.» No esclarecimento que se segue, Pinheiro Ferreira, a propósito do consentimento tácito, indica quais são os sacrifícios que o cidadão tacitamente aceita: «os cargos públicos, o serviço militar, as obrigações provenientes dos contactos, e os efeitos de presunção legal, são exemplos de consentimento tácito.» 

 

 

 

 

 

 

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