domingo, 19 de janeiro de 2014

Desconsideração: Sequelas


A existência humana nunca será totalmente autónoma, porque cada vez mais a interdependência de pessoas, povos e nações é uma realidade, a que alguém se poderá furtar, na medida em que é impossível suprir, individualmente, todas as necessidades, sejam de natureza: física, psicológica, axiológica e sentimental. Haverá sempre uma carência, cuja satisfação não depende da própria pessoa, por isso, a importância de se estabelecerem laços interpessoais, que devem ser fortalecidos, constantemente melhorados e consolidados.
Ao longo da vida, vamos encontrar diversas situações, as quais, deveremos entender, resolver o que for necessário, assumir as responsabilidades que elas impõem, compreender as oportunidades que nos podem oferecer, eliminar tudo o que não nos diz respeito, sempre com o cuidado de não prejudicarmos, sob qualquer forma, quem está direta, ou indiretamente, envolvido, porquanto e no que respeita às pessoas, toda a atenção é pouca.
O relacionamento interpessoal ocorre desde o nascimento até à morte. Durante o período de vida física assume diversas dimensões e intensidades. Desde os pais, irmãos e restante família, amigos, passando pelos colegas de catequese, escola, trabalho, lazer, associativismo.
Nas muitas e diferentes modalidades, conquistam-se, estreitam-se, consolidam-se abandonam-se e também se destroem valores, sentimentos, afinal, relações mais ou menos verdadeiras, solidárias, leais, enfim, íntimas, estas no sentido mais profundo de um amor, seja com finalidade conjugal, seja de pura amizade de amigo, se se quiser, um grande “Amor-de-Amigo”, pelo qual se procede e desenvolve uma enorme confiança e cumplicidade recíprocas, em que os amigos são muito mais do que parentes muito próximos, ou colegas de uma qualquer atividade.
É muito normal que duas pessoas, ao longo de uma convivência profissional, associativa ou outra, durante um certo período de tempo, iniciem, aprofundem e, desejavelmente, consolidem uma amizade que, inicialmente, começará por gestos de boa educação, amabilidade, convívios mais a sós, projetos em comum, conversas mais íntimas, olhares, gestos e comportamentos mais cúmplices, em que os impulsos de maior aproximação surgem, até atingirem um patamar de relacionamento pessoal que já envolve carinho, meiguice, contactos físicos mais íntimos.
Chegados até este nível, as pessoas apenas desejam estar próximas, muito unidas, solidárias, conversarem e agirem com total lealdade, sempre preocupadas com o sucesso e o bem-estar do amigo, por ele tudo fazendo, tudo dando, com grande generosidade e entusiasmo, para lhe agradar e manifestar um grande “Amor-de-Amigo”. As partes comprometem-se a respeitar outros valores, eventualmente, relacionados com uma vida familiar, com um cônjuge, filhos, pais.
A fronteira entre o “Amor-de-Amigo” e o amor conjugal, por exemplo, está no respeito que é devido aos cônjuges, quando eles existem e então, das duas, uma: ou se decide por uma separação conjugal e tenta-se refazer a vida, com a pessoa por quem se tem sentimentos de amor; ou se mantém o matrimónio, sem contudo se abandonar os sentimentos e atitudes relativamente ao amigo, não ultrapassando, nunca, a linha que separa as duas situações, ou seja: a relação assente naquele amor manter-se-á nos moldes em que foi estabelecida, vivida de comum acordo, consolidada a um nível que não prejudica a felicidade conjugal, antes pelo contrário, acrescenta mais ventura, em termos de carinho, consideração e estima bem como o tal “Amor-de-Amigo”. Uma felicidade paralela.
Ter um amigo, assente num sentimento tão nobre, quanto puro, como é o “Amor-de-Amigo”, constitui, nos dias de hoje, um privilégio que, de facto, não está acessível a mentes preconceituosas, a personalidades mesquinhas, a pessoas que se deixam conduzir pela inveja, aversão e hostilidade aos relacionamentos íntimos. Este novo sentimento é um grande passo para as boas e sinceras relações humanas.
Note-se que o relacionamento íntimo entre dois amigos, de sexos opostos, que se amam, nada tem a ver com a relação matrimonial, própria dos casais que, estes sim, atingem e desfrutam, reciprocamente, de um outro amor, que vai da paixão à entrega total, em circunstâncias únicas, que se verificam e culminam na relação sexual amorosa e apaixonada, na defesa e proteção dos filhos e na construção de um projeto de vida familiar, ou seja: o amor na dimensão mais direcionada para a construção e manutenção de um casamento e do respetivo lar, com tudo o que esta situação implica: axiológica, psicológica, profissional e material.
Como em tudo na vida, importa que se assumam as: promessas, compromissos, valores, sentimentos e emoções, sem medos, com clareza, honestidade, na defesa das causas em que acreditamos, na assunção serena e firme das responsabilidades pelos nossos atos, tanto mais verdadeiros, quanto mais convictas são as nossas atitudes, para com um parceiro que conquistamos e elegemos como nosso amigo especial.
A partir de um certo período de tempo, durante o qual se estreitam relações, se aprofundam e exercem sentimentos, que conduzem à prática de um comportamento muito atencioso, corroborado com manifestações reiteradas de gestos carinhosos, com a troca de cumprimentos e saudações mais afetuosos, onde se podem incluir o abraço e o beijo, próprios de um grande “Amor-de-Amigo”, ficam criadas as condições para uma amizade eterna, que deverá ser defendida e preservada pelos valores da solidariedade, lealdade, reciprocidade, cumplicidade, confiabilidade, verdade e honestidade.
Nestas circunstâncias, foram criadas profundas expectativas e alimentado um projeto de vida que terá por objetivos: o desenvolvimento de uma inequívoca parceria para a construção de uma nova e desejável felicidade, que tanto pode ser única, como paralela e enriquecedora de outra que, por via do matrimónio e respetiva família – cônjuge e filhos -, já existia, que se deseja manter, ou então se pretende terminar, porém, em qualquer dos caos, aquela parceria, firmada num autêntico “Amor-de-Amigo”, deverá manter-se e ser sempre melhorada.
Os comportamentos, estratégias e métodos que, a partir de determinada altura, um dos parceiros começa por utilizar, em ordem a destruir um grande “Amor-de-Amigo”, sem que para isso a outra parte tenha contribuído e/ou desejado, poderá configurar uma injusta e inaceitável traição aos princípios, valores, sentimentos e emoções, desde sempre manifestados pelo amigo, agora enganado, o que será considerado como uma profunda crueldade, e suscitar a dúvida sobre se, realmente, por parte de quem assim procede, alguma vez foi, realmente, solidário, amigo e leal.
Quem é vítima de tamanha deslealdade, seguramente que fica, indelevelmente, magoado, talvez para o resto da vida, o sofrimento e o desgosto apoderam-se da pessoa agora humilhada, quem sabe se hostilizada, maltratada pela indiferença, rejeição, falta de estima, consideração e carinho, pelo até então considerado amigo especial que, pensando que já não mais precisa daquele que sempre esteve e, eventualmente, continua a estar do seu lado, afastando-se, agora, desumanamente.
As sequelas de uma tal desfeita, materializada em atitudes de indiferença, desconsideração e rejeição, são incalculáveis e, contingentemente, irreversíveis. A pessoa que confiou tudo noutra, a quem tudo deu, do que tinha e não tinha, que manteve um relacionamento de sincero “Amor-de-Amigo”, que manifestou intenso carinho, ternura sem limites e inequívocas: solidariedade, amizade e lealdade, quando se sente afastada, por quem julgava ser seu amigo especial, pode, inclusivamente, cometer alguma loucura porque a humilhação, a indiferença, a deslealdade e a rejeição aniquilam: psicológica, espiritual e fisicamente.
O mundo e a vida reservam-nos imensas surpresas e, mais tarde ou mais cedo, o “Tribunal da Nossa Consciência”, não nos negará Justiça. É possível que o arrependimento surja, os remorsos nos atormentem, porque o passado ficará para sempre inscrito na nossa memória, dele não vamos escapar enquanto tivermos conhecimento da nossa identidade existencial.
O sofrimento e o desgosto são tanto mais dolorosos quando partem, precisamente: das pessoas de quem mais gostamos; por quem tínhamos um sincero e inequívoco “Amor-de-Amigo”; a quem nós, confiantemente, nos entregamos; a quem nós confessamos os nossos desejos, dificuldades, problemas, alegrias, tristezas; a quem mais dedicamos total solidariedade, amizade, lealdade e dádiva dos nossos valores, sentimentos e emoções. Quando assim acontece, sentimo-nos traídos, vexados e uns joguetes nas mãos de quem nos utilizou, com tanta impiedade e desumanidade.
A vida não poderá correr bem a quem atraiçoa princípios, valores, sentimentos e amigos. Tem de haver uma forma de se fazer justiça, independentemente da vontade das vítimas. É certo que quem sempre esteve de boa-fé num relacionamento, quem tem bons princípios, valores e sentimentos puros, verdadeiros e nobres, nunca será inimigo daquelas pessoas que, agora, nos desconsideram, nos humilham e nos afastam de suas vidas, mas a mágoa, a dor, o sofrimento e o desgosto ficam para sempre e, realmente, podem conduzir a alguma situação irreversível.
Por vezes, incompatibilizamo-nos com outras pessoas, justamente para sermos fiéis, solidários e leais àquelas por quem temos uma amizade muito profunda. Acontece, inclusivamente, recursarmos trabalhar com pessoas que ofendem, que desvalorizam e que, injustamente, comprometem o trabalho de quem nós tínhamos por amigos, porque não se pode, nem deve, ser amigo de quem não é amigo do nosso amigo.
Assumam-se, portanto, comportamentos que sejam solidários, que revelem que estamos firmemente do lado de quem gostamos, se preciso for, contra tudo e contra todos. Ora, quando esta nossa dedicação é desvalorizada e aquelas pessoas, por quem demos tudo, afinal, continuam a conviver, a pactuar, com as que as prejudicaram, isso revela querer conviver com todos, atraiçoando os nossos valores de solidariedade, amizade e lealdade.
 
Diamantino Lourenço Rodrigues de Bártolo
 
Portugal: http://www.caminha2000.com  (Link’s Cidadania e Tribuna)

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