A sociedade, convictamente, democrática, livre e
civilizada de hoje está, todavia, conturbada, é muito complexa, difícil e vive
desnorteada em relação a certas situações, insensível, materialista e obcecada
pelo “Salve-se, quem puder”, não se
olhando, por vezes, a meios, eventualmente, os mais cruéis, para se atingirem
fins, nem sempre os melhores.
Vive-se, pelo menos a maioria das pessoas: num
mundo instável; adotam-se valores que favorecem situações contrárias aos
legítimos interesses de uma maioria que, de boa-fé, confiou e teve esperanças
num futuro promissor que uma minoria lhes prometeu. Atualmente, segunda década
do século XXI, o que ontem era verdade, seguro, adquirido; hoje é falso,
inseguro e perdido.
Grandes princípios, valores, normas jurídicas e
sociais, consagradas, eventualmente, em documentos religiosos, políticos e
cívicos, são “letra-morta”, ou
ignorada, ou ainda, substituídos, unilateral e traiçoeiramente, por outros que
satisfazem interesses alheios ao bem-estar das populações, de quem realmente
trabalha (para quem, ainda, tem o privilégio de um emprego) de quem produz
riqueza, de quem tem experiência de vida vivida e sentida, com poupança,
sacrifícios, humildade e honestidade.
A estas pessoas, cuja esmagadora maioria, não
nasceu em “berço de ouro”, nem teve a
ajuda de ninguém, e que, pelo contrário, necessitou de começar a trabalhar aos
seis ou sete anos de idade, em vez de brincar, de estudar, a estas pessoas,
tudo, mas tudo, lhes vai sendo retirado, possivelmente, sem retorno.
O princípio, segundo o qual: «Direitos adquiridos, não podem ser perdidos», era uma segurança do
Direito Consuetudinário, além de que, certos direitos, estabelecidos no
designado direito positivo, escrito, concebido pelas pessoas, dotadas de razão,
conhecimentos, experiência, sabedoria e prudência, tais direitos, pura e
deslealmente, foram subtraídos, inclusivamente àquelas pessoas que para eles
contribuíram, financeiramente, pelos impostos pagos, ao longo de uma vida de trabalho,
aliás, ao que parece, até se prolongam pela reforma, através de taxas,
sobretaxas e sabe-se lá o que virá mais.
A título meramente ilustrativo das injustiças e,
possivelmente, das irregularidades, seria certo que: «Toda a pessoa tem direito ao repouso e aos lazeres e, especialmente, a
uma limitação razoável da duração do trabalho e a férias periódicas pagas”
(DUDH, 1948: Artº 24, in BÁRTOLO, 2012:45). Este preceito universal foi,
integralmente, vertido para a Constituição da República Portuguesa, conforme
plasmado na alínea d) do Artº 59º (CRP, 2004:35).
A suspensão, em 2012, e os cortes então previstos e
concretizados a partir de 2013, inclusive, por exemplo nos subsídios de férias
e de Natal, contrariam o espírito de documentos universais, que Portugal
subscreveu há 66 anos, bem com a Lei Fundamental Portuguesa, porque se pode
admitir que haveria, como acabou por se concretizar, uma evolução positiva, no
sentido de, para além das férias pagas, se lhe acrescentar um subsídio, para
que os cidadãos gozassem, merecidamente, tal período, assim como no Natal, o
mesmo subsídio para que se possa viver este dia da família com um pouco mais de
fartura e dignidade. Nunca ninguém prometeu cortar tais benefícios, bem pelo
contrário, foi prometido que eles se manteriam.
Estudava-se na disciplina de “Direito Romano”, do
curso superior de Direito, que um dos pilares fundamentais do Direito era,
justamente, a sua segurança e objetividade, interpretação da letra, mas também
do espírito da lei e sua aplicação justa. Por muito complexa que a sociedade de
hoje se apresente, as leis não podem ser alteradas, arbitrariamente, de um dia
para o outro.
Infelizmente, o que cada vez mais se teme, até por
decisões de Órgãos Constitucionais, insuspeitos e competentes é que, sempre que
seja necessário para determinadas políticas, o Direito não se cumpre, ou
alteram-se, radical e rapidamente, as normas jurídicas que “estorvam” a
determinados objetivos e, ainda mais, se tanto for oportuno, até se suspende a
Constituição por alguns meses. Seria caso para se pensar que se vive uma
“Democracia muito singular”.
É suposto que numa democracia indireta, a maioria
da população é representada por uma minoria que, mediante a conceção de um
determinado projeto governativo, apresentado aos cidadãos, em campanha
eleitoral, depois o execute, conforme prometeu, caso vença as eleições,
precisamente por aqueles, cujos nomes constavam das respetivas listas, levadas
ao conhecimento do eleitorado. Estes concidadãos, e não outros, em quem a
maioria confiou o voto, têm a obrigação de cumprir, clara e lealmente, com o
programa sufragado pela maioria, porque é assim que a política se deve
realizar.
A política e os políticos são tanto mais nobres,
quanto melhor resolvem os problemas das pessoas, e tanto mais credíveis quanto
mais solidários e leais se revelam, aliás, é um imperativo ético-moral para com
todos os cidadãos. A política e os políticos, num regime democrático, têm de
estar ao serviço da população em geral e, em certas circunstâncias, até podem
desenvolver a discriminação positiva, relativamente às classes
sócio-profissionais e etárias mais desprotegidas, carenciadas e fragilizadas,
mas nunca, em circunstância alguma, um ataque sistemático, precisamente aos
mais fracos.
A instabilidade jurídica que, modernamente,
percorre a vida em sociedade, podendo, em parte, ser provocada pela
complexidade de situações sociológicas, económicas, financeiras e axiológicas,
não deve, contudo, afetar projetos pessoais, empresariais e institucionais,
elaborados na base da confiança entre as partes e nos fundamentos da Lei. Se
assim não acontecer, corre-se o risco de ninguém querer investir, trabalhar,
economizar para obter bens essenciais à própria dignidade humana., por exemplo,
obter habitação própria (preceito constitucional) para depois lhe ser cobrado
um imposto que, em muitos casos, até é superior a uma renda de uma casa
alugada.
A segurança do Direito deve, sempre, garantir a
aplicação da norma, tal como ela foi apresentada e aceite pelas partes, quando
se inicia um projeto, uma atividade, o início de uma carreira profissional, um
período de aposentação, seja uma reforma, seja uma pensão, não pode ser
alterada negativamente, por conveniência de outros interesses, de resto, toda a
norma jurídica vale para o futuro e só quando é favorável ao cidadão é que terá
efeitos retroativos, aliás, isto mesmo preveem as leis penais.
A vida é como um jogo, que em cada fase e atividade
se inicia com determinadas regras, que são cumpridas pelas partes e se não o
forem haverá sanções. Tal como em qualquer outra competição, não se pode, nem
deve, mudar regras a meio do jogo, exceto se tais mudanças implicarem
benefícios para os “jogadores”, na circunstância, para os cidadãos. Se assim
não for, poder-se-á estar perante decisões ilegítimas, ilegais e de abuso do
poder.
Iniciar uma qualquer atividade com determinadas
regras jurídicas, que as entidades públicas, legislativas, executivas e
fiscalizadoras obrigam a que sejam cumpridas e que ao longo desse exercício, a
pessoa, o profissional, a empresa, as instituições em geral, são obrigadas a
cumprir e, em circunstância alguma deve alterar, unilateralmente, aquilo que
também, unilateral impôs de início. Há um mínimo de rigor, de lealdade, de
confiança e de decência que, ética e moralmente, se exige seja cumprido.
Nesta linha de pensamento, os cidadãos projetam as
suas vidas, o seu futuro, também, e ainda que parcialmente, o de seus
dependentes e descendentes. A pessoa constrói um projeto de vida em função do
que lhe é oferecido, do que lhe é exigido, que ela cumpre rigorosa e
pontualmente porque, mais à frente na vida, sabe que vai precisar de
determinadas condições, benefícios materiais, que previamente acordou, com a
outra parte, vir a receber, por exemplo, na velhice mas, de repente, tudo lhe é
retirado, com a alegada “emergência
nacional”. Verifica-se, assim, uma quebra de confiança provocada pela parte
mais forte: o Estado.
Convém referir que o “estado de emergência” é uma
figura constitucional: «2. O estado de
sítio ou o estado de emergência só podem ser declarados, no todo ou em parte do
território nacional, nos casos de agressão efectiva ou iminente por forças
estrangeiras, de grave ameaça ou perturbação da ordem constitucional
democrática ou de calamidade pública» (CRP, 1976:Artº 19º), que nada tem a
ver com a emergência económica, portanto suspender ou retirar direitos que
foram adquiridos, parece uma grande injustiça, para além de, eventualmente,
inconstitucional.
A insegurança do Direito conduz às falências
pessoais, empresariais, económicas e financeiras. Ninguém vai investir num
projeto cujas regras são unilateralmente eliminadas ou substituídas por outras
mais severas, injustas e, quantas vezes, irregulares.
Como é possível que a um trabalhador que paga
coercivamente os seus impostos, que contribui para uma segurança social,
assistência médica e medicamentosa, que desconta para ter outros benefícios,
para uma velhice relativamente tranquila, de repente se veja sem esses
benefícios que subscreveu, com a outra parte, no início da sua atividade
profissional? Não é leal, nem justo “alterar
as regras a meio do jogo”, porque isso equivale a um autêntico “logro”, com
a agravante da parte prejudicada não se poder defender.
As decisões unilaterais, autoritárias, prepotentes
e violentas não são próprias de uma sociedade civilizada, democrática e
defensora dos mais elementares direitos humanos e, quando se verifica a
imposição do mais forte, regride-se ao tempo das cavernas, em que os mais
poderosos têm o domínio completo sobre os mais fracos, que não têm recursos
para se defenderem.
A sociedade atual, em muitos países, bem poderá
equiparar-se a uma selva, onde a lei do mais forte, do “quero, posso e mando” é a que prevalece, com base na fraqueza de um
Direito instável porque, rápida e frequentemente, alterável, em função de
interesses alheios ao bem-estar do povo em geral e dos mais fracos em
particular, com a agravante de que algumas entidades fiscalizadoras, que
deveriam ser as primeiras a zelar pela segurança do direito, nem sempre
conseguem cumprir a sua missão, com solidariedade e lealdade para com os
contribuintes mais desprotegidos.
A instabilidade do Direito é ainda mais
preocupante, quanto é certo que quando ocorrem alterações na legislação, elas
contemplam um conjunto, por vezes muito vasto, de exceções e, quando se trata
da perda de benefícios e direitos adquiridos, aquelas exceções, com alguma
frequência, abrangem quem já tem imensos privilégios.
Em bom rigor são, praticamente, sempre os mesmos a
suportar as medidas mais penosas: trabalhadores, reformados, pensionistas e
desempregados. Além desta inquietante insegurança do Direito, ainda acresce a
discriminação negativa, ou seja: os privilegiados e protegidos continuam, na
sua maioria, incluídos nas exceções para os benefícios e direitos adquiridos,
mantendo-os ou até reforçando-os.
Pode-se afirmar que há uma grande falta de
solidariedade e de lealdade daqueles que prometem e depois não cumprem. A
palavra de honra, que em termos de honestidade, valia mais do que qualquer
escritura, hoje, ao que parece, é apenas um “valor” para estratégias de sedução
política.
Bibliografia
BÁRTOLO, Diamantino Lourenço Rodrigues de, (2012). Direitos Humanos: Alicerces da Dignidade. 1ª Edição, Lisboa:
Chiado-Editora.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA, (1974),
Versão de 2004. Porto: Porto Editora.
Diamantino Lourenço Rodrigues de Bártolo
Telefone:
00351 936 400 689
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